“Diante da desigualdade, cresce mais o populismo do que a esquerda”. Entrevista com Mike Savage

Rocinha (Fonte: Wikimedia Commons)

22 Fevereiro 2022

 

Mike Savage é diretor do Departamento de Sociologia, da London School of Economics and Political Science, e professor visitante no Sciences-Po (França) e na Bergen (Noruega). Seu último livro é The Return of Inequality e aborda um tema essencial na sociedade do século XXI: a desigualdade.

 

A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 18-02-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Em seu último livro, “The Return of Inequality”, você argumenta que o capitalismo contemporâneo não é novo, dinâmico e turboalimentado e que está marcado pelo enraizamento dos privilégios herdados e a renovação do império em um mundo pós-colonial. Quando as bases dessa situação começaram a ser assentadas?

 

Vimos em muitas ocasiões, nos últimos quarenta anos, um aumento da desigualdade. Costumávamos pensar a desigualdade em termos de renda, de quanto as pessoas ganham com suas remunerações ou salários, mas na verdade, e aqui estou me inspirando muito no trabalho de Thomas Piketty, em alguns aspectos é apenas a ponta do iceberg. Por trás, está a importância da riqueza. Por riqueza me refiro a ativos, o valor de sua casa, as poupanças, as ações que alguém possui.

Os economistas demonstraram que nos últimos quarenta anos as pessoas mais ricas do mundo aumentaram rapidamente seus ativos. Há limites para o dinheiro que podemos ganhar em um ano. Mesmo as pessoas mais bem pagas só recebem até certo limite, ainda que seja muito alto. Mas a riqueza pode continuar sendo acumulada e herdada. É transmitida quando alguém morre. Ocorre o efeito Matthew: quanto mais riqueza você tem, mais riqueza pode acumular porque há um retorno de seu investimento que é desproporcional. Esse processo começou de fato nos anos 1980, com o aumento das políticas liberais.

 

Com Margaret Thatcher.

 

Com a ascensão dos mercados, especialmente no mundo desenvolvido. Um caso são os cortes fiscais. Algo que aconteceu nos Estados Unidos, mas também na América do Sul. É um processo que remonta a quarenta anos atrás, mas que se acumulou nos últimos anos. Na medida em que for mantido, a desigualdade aumentará.

 

 

Houve uma mudança de paradigma que fez com que a pobreza e a desigualdade deixassem de ser objeto central da economia e passassem a ser domínio exclusivo da sociologia?

 

Durante décadas, nossa principal preocupação foi pensar em como tirar as pessoas da pobreza. Mais da metade da população mundial vive na Ásia. Muitas pessoas viviam na pobreza crônica. As ciências sociais pensavam em como tirar as pessoas da pobreza e melhorar o seu nível de vida. Foi um processo que teve muito sucesso. Quando se mede a pobreza como estado de privação, isso diminuiu em nível mundial. Não foi eliminado. Ainda existem bolsas de pobreza significativas em muitos países, embora tenham diminuído substancialmente.

 

Os economistas destacam isso como um sucesso. Mas a questão realmente crucial é o aumento da renda dos mais ricos. A posição dos mais pobres do mundo melhorou, mas a posição dos mais ricos do mundo melhorou ainda mais. Os sociólogos concordam que privilégios desproporcionais e riqueza desigual geram todos os tipos de disfunções sociais. Uma delas é a influência dos mais ricos na política.

 

A pandemia foi uma má notícia em termos de desigualdade?

 

Foi uma surpresa, embora muitas pessoas tenham alertado que aconteceria. Pegou de surpresa muitos governos, particularmente fora da Ásia. Inicialmente, considerou-se que era uma força equalizadora. Todos nós seríamos infectados ou poderíamos nos infectar. Imaginou-se que poderia ter um efeito nivelador.

 

Em muitos países, foram implementadas políticas para apoiar as pessoas relativamente pobres, que poderiam perder seus postos de trabalho. No Reino Unido, o governo pagou 80% da remuneração daqueles que perderam seus trabalhos. Mas na medida em que a pandemia avançou, percebemos que a desigualdade aumentou.

 

 

As pessoas com mais probabilidades de contrair a covid-19 são as que estão na linha de frente, as que trabalham no setor público, as que trabalham no transporte, nos serviços de saúde, na educação. Foram expostas ao vírus. As pessoas que perderam seus empregos são essencialmente aquelas que não puderam adquirir o Zoom. Os empregos mais afetados pela covid-19 são os dos trabalhadores braçais.

Uma das características estranhas é que os ricos não puderam gastar o seu dinheiro facilmente. Os restaurantes ficaram fechados. As férias caras não ficaram disponíveis, o que facilitou a acumulação. A desigualdade já estava em níveis elevados e aumentou. Um fenômeno que também ocorreu em termos de raça e gênero. Portanto, penso que em geral agravou a situação.

 

Você disse que “as mudanças climáticas, a intensificação das crises médicas, que se manifestam mais claramente na pandemia de covid-19, e o aprofundamento das políticas militaristas e nacionalistas se tornaram cada vez mais evidentes”. As mudanças climáticas afetam os mais pobres?

 

Um dos principais argumentos de meu livro é que temos que enfrentar as mudanças climáticas. Inicialmente, tínhamos negacionistas. Pessoas que diziam que era exagero ou que se dava muita importância para isso. Mas com o tempo, a negação se tornou algo bem pouco significativo. Com poucas exceções, a maioria dos cientistas e dos líderes políticos reconhecem que é preciso abordar o assunto.

Devemos abordar a desigualdade de forma semelhante à questão das mudanças climáticas. São dois desafios fundamentais nas próximas décadas. Para as mudanças climáticas existem planos. Não sou um especialista na matéria, sendo assim, não posso avaliar se terão sucesso. Mas há esforços sérios. A desigualdade ainda não está no mesmo plano. Ainda não existe um consenso no mundo de que a desigualdade é um problema sistêmico.

Ainda há pessoas que negam que a desigualdade seja um problema, um número considerável de pessoas diz que não é um problema ter desigualdade, desde que as pessoas pobres sejam razoavelmente bem atendidas. Quando se tem uma sociedade muito desigual, as elites possuem uma grande quantidade de recursos para agir de forma contrária ao interesse público e são capazes de distorcer a política do governo a seu favor.

 

 

O primeiro passo com a desigualdade é reconhecê-la como problema. É uma tendência. Se compararmos os debates atuais com os de dez anos atrás, existe maior reconhecimento a esse respeito. Sabemos que existe uma forte ligação entre as pessoas que utilizam mais recursos ecológicos. São as pessoas mais ricas que deixam mais depósitos de carbono. Os ricos possuem carros grandes, viajam mais em aviões, têm casas maiores que custam mais para aquecer. O país mais rico do mundo, os Estados Unidos, é de longe a nação com o pior desempenho em termos de emissões climáticas.

 

Quanto mais desiguais são as sociedades, mais provável é que as emissões de carbono sejam um problema, justamente porque os ricos são seus agentes causais. Os pobres não podem se permitir muita calefação ou possuir carros. É preciso abordar a desigualdade e pensar em formas para frearmos os recursos dos super-ricos, mas também desenvolver formas de vida sustentáveis para as pessoas de classe média, que vão gerar um ambiente melhor e serviços públicos. A luta contra as mudanças climáticas e a luta contra a desigualdade caminham de mãos dadas.

 

Você se perguntou: “O que significa pertencer quando se vive em um país muito dividido? Qual é a ligação entre as fronteiras nacionais, o capitalismo global e a desigualdade?”. Como responderia as duas perguntas hoje?

 

Vivemos o paradoxo de que conforme a desigualdade avança, não vemos a ascensão da esquerda, mas a ascensão das forças populistas. Penso em Donald Trump e seu sucesso nos estados, no populismo europeu, incluindo o Reino Unido. Penso no Brasil com Jair Bolsonaro. É uma complicação, porque esperávamos que sociedades mais desiguais levassem a propostas mais progressistas.

Donald Trump é um exemplo clássico de como surgem empresários ricos capazes de capitalizar a ira dos grupos desfavorecidos. São os que falam de casta política. As pessoas da classe média têm os melhores trabalhos, as melhores casas. Prometem resgatá-los da casta. É uma estratégia muito hábil.

Em muitos países, a esquerda está associada aos professores, aos serviços de saúde, às classes médias profissionais. Portanto, está associada ao princípio do problema: têm bons trabalhos, boa educação e se saíram bem em uma situação de desigualdade. Com o tempo, serão encontradas mais evidências de que seus interesses consistem em desafiar o poder das grandes empresas e elites.

 

 

Acompanhei com grande interesse a eleição de Gabriel Boric no Chile. Representa um novo tipo de política socialista. Baseia-se no movimento estudantil e nos movimentos sociais. Tenta utilizar o populismo de uma forma mais progressista. A Argentina possui sua própria grande história de populismo com o peronismo. Com o tempo, encontraremos mais exemplos de forças populares que elegem uma estratégia mais progressista para desafiar o poder. Mas precisamos observar como isso se desenvolve em diferentes países.

 

A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos pode marcar uma mudança rumo a uma corrente semelhante. E veremos o que acontece com as eleições que se aproximam no Brasil. Os próximos cinco anos abrem um momento crucial para o futuro de nosso planeta. É vital que os progressistas pensem em como construir alianças, abraçar os movimentos sociais e pensar políticas que abordem abertamente a desigualdade. Não é perseguir projetos sectários. Deveríamos tentar construir uma frente popular. Uma aliança popular.

 

Boris Johnson é um populista ou cabe a ele outra categoria de análise diferente em relação a Trump, aos populismos de esquerda latino-americanos ou a Jair Bolsonaro?

 

É um caso muito interessante, como Donald Trump. Dez anos atrás, jamais teríamos imaginado que Donald Trump fosse presidente dos Estados Unidos. Ninguém levava a sério sua vontade de ser presidente. No entanto, venceu em 2016. E perdeu em 2020, mas de forma muito apertada.

 

O caso de Boris Johnson é parecido. Muitos meios de comunicação britânicos e membros da opinião pública concordam que não está apto para o cargo. É um mentiroso, não é digno de confiança, não trabalha muito, não escuta as pessoas. Então, por que foi eleito?

 

A razão é que efetivamente era um populista, e muitas pessoas se sentem excluídas. Sentem que as elites são as que mandam e estabelecem as leis. Johnson, que não faz parte desse consenso na elaboração de políticas racionais, surge muito atraente. Gostam de eleger um travesso, porque querem romper e desafiar o sistema. Também cabe pensar neste termo: “nacionalismo”. Muitas vezes se diz que seu processo é esse, especialmente após o Brexit. É muito simplista.

 

Por trás do Brexit, de Boris Johnson e do Partido Conservador não há nacionalismo. Está preocupado em reafirmar a Grã-Bretanha como uma grande potência quase imperial. A ideia de sair da União Europeia parte de um projeto de eliminação da regulamentação da economia, tornando o Reino Unido um centro de finanças no estrangeiro, diminuindo os impostos, encorajando as pessoas ricas de todo o mundo a investir no Reino Unido.

 

Existe algo de ridículo nisso, porque Boris Johnson não é um líder imperial como foi Napoleão. Seu herói é Winston Churchill. Vê a si mesmo como um remake de Winston Churchill, o que é um pouco louco. Está claro que Winston Churchill foi um líder da Grande Guerra, o que é inimaginável no caso de Johnson. No entanto, é a imagem que tenta evocar.

Algo similar pode ser visto em Putin ou Erdogan. Aproveitar a visão imperial do mundo e o papel imperial de seu país é uma característica crescente na política contemporânea, algo que desafia a soberania das nações menores e menos poderosas. É particularmente inquietante.

 

Você destacou que “os estudos sobre a desigualdade permitem às ciências sociais se concentrar mais nos problemas, em vez de se guiar por uma agenda disciplinar. Isto permitiu um novo tipo de debate. Obviamente, temos muitos paradigmas: marxista, bourdieusiano, vários paradigmas feministas, antirracistas, pós-coloniais, etc. Mas acredito que também estamos reconhecendo que esses paradigmas individuais em si mesmos não são suficientes. É preciso pensar nas coisas de forma mais criativa e aberta”. O feminismo é o eixo da agenda progressista do século XXI?

 

Nas ciências sociais ainda temos disciplinas muito fortes. Nós nos pensamos como economistas ou sociólogos. Assim retornamos a nossas metodologias e teóricos preferidos. Nas ciências naturais, na medicina, os grandes avanços se dão sobre temas específicos como a fabricação de vacinas. Para desenvolver vacinas são necessários conhecimentos em diferentes áreas, como biologia ou química. Precisamos ser muito mais criativos na hora de colaborar em ciências sociais.

 

 

Na questão da desigualdade, é possível a colaboração de economistas, sociólogos e cientistas políticos que reconhecem que a desigualdade é importante. Podemos pensar em unir forças e desenvolver uma compreensão compartilhada. Assumir o paradigma de abordagem das mudanças climáticas. Os cientistas do clima provêm de diferentes tradições: geografia, física, química e engenharia.

 

No que diz respeito ao feminismo, é um grande exemplo da forma como, pegando o tema da desigualdade de gênero, [é possível] o uso de diferentes tipos de experiência da história e da filosofia, da economia, para entender o significado de gênero e chegar a uma interpretação global das tendências. Há grandes problemas em torno da desigualdade de gênero. Muitos foram expostos pelo movimento MeToo. Sabemos mais sobre a violência enfrentada pelas mulheres. Também é verdade que se experimentou uma melhora a esse respeito nos últimos cinquenta anos.

 

O feminismo como movimento social, com pesquisadoras e acadêmicas feministas, mais a contribuição de muitas mulheres e alguns homens, mobilizou a opinião pública. Um paradigma que pode ser aplicado com a raça. E também com a desigualdade econômica. Um trabalho colaborativo que dará frutos no futuro.

 

Em uma entrevista desta mesma série, o filósofo Thomas Pogge disse que o FMI é um promotor de desigualdades. Concorda? Estamos diante de um FMI “mais humano”, como se insinuou diante da saída de Christine Lagarde?

 

Concordo com o espírito desse argumento, especialmente com a ascensão das chamadas políticas neoliberais. A partir dos anos 1980, em muitos países, incluindo muitos da América do Sul, apoiou-se a ideia de que para tirar as pessoas da pobreza é necessário desenvolver soluções de mercado. Fomentar a mercantilização de muitos aspectos da vida. Implica a privatização de serviços estatais, empresas e indústrias. Esse projeto levou a um aumento sistemático da desigualdade.

 

O exemplo mais assombroso é o da antiga União Soviética. Quando caiu o regime comunista, nos anos 1980, os Chicago Boys estadunidenses chegaram com doutrinas de mercado muito impactantes sobre como era necessário privatizar e vender os serviços públicos pelo melhor lance. E isso gerou enormes desigualdades na sociedade russa, incluindo o fato de que na Rússia caiu a expectativa de vida entre os mais pobres. Claro, alguns oligarcas se saíram extremamente bem.

 

O mesmo aconteceu com o regime de Augusto Pinochet, no Chile, com o famoso exemplo de como os Chicago Boys entraram e moldaram realmente a sociedade com esse modelo baseado no mercado. Na Argentina é diferente, mas também podemos notar paralelismos. A ideia de pensar em ampliar o papel dos mercados e diminuir o papel do Estado e do setor público contou com instituições que o apoiavam. O Banco Mundial, que você mencionou, o FMI, o mundo de muitos acadêmicos universitários e certos tipos de economistas promoveram isso.

 

 

Em muitos casos, agiu-se de boa-fé: pensavam que era a melhor maneira de fomentar o desenvolvimento social. Não devemos atacar pessoalmente as pessoas que propuseram essas iniciativas que, a longo prazo, geraram desigualdade e colocaram o setor público em um lugar muito incapacitante.

 

Alguns sociólogos disseram que em muitos lugares, mesmo que tenhamos um trabalho decente, receitas razoáveis e vivamos em uma casa decente, nos sentimos inseguros. Percebemos que a situação é precária porque não temos um setor público que nos apoie. Se perdermos nosso emprego, se nossa renda diminuir, não poderemos pagar o aluguel, nossas dívidas. Para alguns especialistas, o sentido da precariedade, da vulnerabilidade, está se tornando endêmico entre muitas pessoas, não só pobres, mas também pessoas que se veem como de classe média.

 

No Reino Unido, habitualmente as pessoas pagam empréstimos para ter suas casas. Conforme a inflação aumenta, não conseguem pagar, perdem seus empregos e abandonam a moradia, sem ter para onde ir. Essa sensação de vulnerabilidade está ligada à aplicação de políticas neoliberais, apoiadas por poderosas instituições mundiais.

 

Em sua análise, nota-se como a questão da desigualdade é produzida. Qual é a ligação entre geração da riqueza e distribuição? É possível redistribuir em uma sociedade empobrecida?

 

Fico preocupado com o lugar que muitas sociedades dão à meritocracia. Um argumento a favor de uma desigualdade que seria aceitável consistiria em afirmar que precisamos de certa desigualdade para que as pessoas se sintam incentivadas a trabalhar. Assim, muitas pessoas acreditam que vivem em uma espécie de sociedade meritocrática. Acreditam que a desigualdade está certa. Se você trabalha o suficiente ou tem talento, é capaz de aumentar sua renda, conseguir um bom trabalho e ter sucesso. E que não há nada de ruim nisso.

 

É possível notar isso em muitos âmbitos da vida. Os jogadores de futebol ganham muito dinheiro. Tudo bem, pois são grandes artistas e gostamos de ver jogadores habilidosos. Mas a questão é que a maioria da riqueza é herdada. Há exceções de pessoas que a conquistam por mérito próprio.

 

 

Thomas Piketty oferece números esclarecedores a esse respeito. Quando a maior parte da riqueza é herdada e não conquistada, é realmente difícil defender a desigualdade. No fundo, seria apenas uma questão de sorte em nascer em uma família rica e não pobre. Quando se pensa com profundidade, é difícil defender a desigualdade.

 

Isso nos leva à sua pergunta sobre se é razoável tentar redistribuir a riqueza. Há uma demanda crescente em muitos setores para desenvolver um imposto sobre a riqueza. Foi incentivada por Thomas Piketty, por exemplo. A ideia do imposto sobre a riqueza, algo da natureza de um imposto sobre a renda. Ter que pagar certa proporção de nossas receitas ao governo como impostos. Alguns países têm um imposto sobre a riqueza, mas não muitos.

 

No Reino Unido, não há imposto sobre o patrimônio. É possível ter milhões de libras em ativos sem ser tributados. Apenas uma parte. Se você o torna fonte de receitas, são tributados, como no caso da venda de uma casa. No mais, a riqueza pode ser acumulada sem ser tributada. Se houvesse um imposto mesmo que em uma quantidade muito pequena desses ativos, faria uma diferença substancial.

 

Meu colega da London School of Economics, Andy Summers, e um economista da Universidade de Warwick, chamado Arun Advani, dirigiram uma Comissão do Imposto sobre o Patrimônio no Reino Unido. Só os muito ricos pagariam um imposto sobre o patrimônio. E mesmo que você pague apenas 1% de sua riqueza ao ano, como imposto sobre o patrimônio, geraria uma grande quantidade de dinheiro para o tesouro. Seria arrecadado uma enorme quantidade de dinheiro que poderia ser utilizada para apoiar os serviços públicos. Sendo assim, apresentaram a questão para o debate público.

 

Como parte de seu trabalho, encomendaram uma pesquisa perguntando aos britânicos comuns o que pensavam a respeito do imposto sobre a riqueza e é muito menos impopular do que o imposto sobre a renda. As pessoas reconhecem que a riqueza é estática e é razoável no extremo superior. Será uma tendência nos próximos anos.

 

No Reino Unido, temos uma reforma do imposto à herança que demonstrou certo limite. Você tem que pagar 40% da herança como um imposto ao governo. A maioria das pessoas não pagaria um imposto sobre a riqueza, mas se arrecadaria uma quantidade importante de dinheiro. Também existe o fato de que as pessoas ricas são muito boas para ocultar sua riqueza. Uma das preocupações é que um imposto desse tipo levará a mais esforços para ocultar a riqueza.

 

O imposto sobre a riqueza serve também para trabalhar o fato de que precisamos de uma melhor transparência financeira entre os países, assim como dentro dos países e garantir que os bancos respeitem plenamente os governos e a regulamentação das transações da Fatca. E isto está acontecendo em muitos, muitos âmbitos.

 

Ainda não há sistemas perfeitos, mas há iniciativas. Sem essas políticas convergentes podemos imaginar um mundo no qual a tributação da riqueza seria muito significativa. Não seria em massa e os ricos manteriam grande parte de sua fortuna. Não estamos falando de uma revolução. Mesmo assim, estabeleceria uma grande diferença nos serviços públicos, aumentaria o atendimento à saúde e melhoraria a educação.

 

Como definiria as classes médias no século XXI? Continuam sendo um fator determinante dos processos políticos e sociais?



São muito importantes. Tradicionalmente, pensamos as classes como a diferença entre ser classe média e classe trabalhadora. Essa é a única maneira. Certamente, no Reino Unido e em muitas nações, as pessoas costumam distinguir duas grandes classes. Você é da classe média? Você é um profissional ou um trabalhador braçal? Trabalha com as suas mãos? É muito simples para compreender a classe hoje em dia.

 

 

O que temos que fazer é desenvolver uma nova forma de pensar sobre a classes, que reconheça que as classes estão muito fragmentadas. Mas também há uma grande polarização entre as classes de elite, que são muito ricas, e as classes que estão na base, as que chamamos classes precárias, as classes inseguras, que muitas vezes têm muito poucos bens nos quais confiar. Sendo assim, acredito que se pensamos na classe com essas formas mais sutis, continua sendo muito importante para compreender a dinâmica política e as desigualdades políticas na vida contemporânea.

 

Na esteira do trabalho de Pierre Bourdieu, você define o conceito abstrato de classe em função de três dimensões de recursos economicamente relevantes que os indivíduos possuem: capital econômico, capital cultural e capital social. Qual é a sua visão a respeito da definição de classes de Bourdieu e como definiria seu compromisso crítico com sua obra?

 

Você tem razão. Muitas vezes, pensamos que as classes têm a ver apenas com a renda ou o trabalho e Pierre Bourdieu argumenta que isso é muito simplista. E no que acredito, seguindo o seu espírito, é que temos que compreender a classe como algo multidimensional que abarca os domínios econômicos, os domínios culturais e também os sociais.

 

Nossa forma de entender a classe é em grande medida uma mistura da renda e a riqueza junto às redes sociais e o estilo de vida e educação. É preciso combinar esses três elementos para desenvolver uma explicação muito mais completa da classe do que dizer simplesmente que a classe tem a ver com o seu trabalho. Caso contrário, seria um esquematismo grosseiro.

 

A socióloga Eva Illouz fala em “capital sexual” no século XXI. Existe como categoria de análise?

 

Não conheço sua obra. O argumento era algo como que sua aparência física e sua beleza podem ser um ativo com os qual pode comercializar. Ser bonito permite ter mais possibilidades de desenvolver redes sociais ou conseguir um trabalho melhor. Há alguns testes a esse respeito. Não acredito que tenha o mesmo grau de importância que o capital cultural, econômico ou social. É difícil para intercambiar.

 

As pessoas talvez possuam diferentes graus de atração física, mas não é possível comercializá-la da forma como o capital econômico é comercializado, adquirido ou transmitido. E, portanto, isso pode ser pessoalmente valioso para se ter. Não acredito que tenha o mesmo grau de importância social. Sendo assim, é interessante, mas eu não daria tanta importância.

 

Você disso que “a partir dos anos 1970, um inspirador grupo de economistas como Anthony Atkinson, Amartya Sen e Joseph Stiglitz insistiram na necessidade de levar a sério a desigualdade e desenvolveram novas ferramentas de medição para estudar as suas tendências. Em inícios do século XXI, essas ferramentas se cristalizaram no desenvolvimento da base de dados World Top Incomes, em 2011, e em 2015 renomeada como World Wealth and Income Database”. Stiglitz é um dos mestres inspiradores do atual ministro da Economia da Argentina, Martín Guzmán. Como você definiria a ideologia do Prêmio Nobel?

 

É um desses economistas mais importantes. Fez com que a economia volte a colocar o foco na desigualdade. Muitos pensam que o enfoque fundamental do pensamento econômico deve ser o crescimento. A famosa metáfora era que a maré alta levanta todos os barcos. Nas últimas décadas, vários economistas se moveram contra essa corrente. Só o crescimento em si não resolverá os problemas das pessoas, criará outros tipos de problemas.

 

 

Stiglitz foi um dos primeiros a apresentar seu argumento. E o importante de Stiglitz é que fez isso em uma posição muito proeminente. Ele é muito popular no Banco Mundial e tem um trabalho muito famoso na Universidade Columbia e, como você disse, é um Prêmio Nobel. Sendo assim, penso que desempenhou um papel muito importante na mudança de rumo da economia.

 

Mas eu o vejo como alguém que trabalha junto com pessoas como Atkinson e o grupo em torno de Piketty. Todos estavam empurrando para a mesma direção, mas é realmente impressionante que estejam trabalhando em diferentes países e ainda que existam diferentes ênfases. Estão construindo pontos semelhantes.

 

Por que o Papa Francisco sente tanta atração pelas ideias de Stiglitz? Qual é a sua opinião sobre o Papa?

 

Uma de suas maiores habilidades é, obviamente, ser um grande economista, mas também consegue popularizar suas ideias muito bem. Sabe que um dos problemas que estamos enfrentando nas economias contemporâneas é a busca de lucros. Assim, o que se percebe é que as pessoas que têm muita riqueza estão buscando maximizar sua renda. E o problema da renda é que não gera benefícios para mais ninguém. É apenas um meio de extração de excedentes, se preferir, que pode ser usado para o lucro privado. E acredito que a ideia de extração de renda é muito metafórica, muito poderosa. E também reconhece como a busca do lucro é uma força maior do que muitas economias nos dias de hoje.

 

Penso que esse tipo de abordagem atrai alguém como o Papa ao dividir as pessoas de espírito público, as pessoas boas que tentam pensar em ajudar a humanidade, versus as outras pessoas que se concentram na extração de renda. Talvez isso explique o interesse do Papa. E quanto à minha opinião geral sobre o Papa, não sou religioso. Não posso falar com detalhes. Na América do Sul, existe a teologia da libertação. As forças religiosas são muito importantes para o bem comum. E o Papa faz parte disso.

 

Qual é a relação entre as reivindicações por direitos individuais, como os das minorias e os direitos nacionais, como os independentismos?

 

Nos últimos cinquenta anos, o Estado-nação se tornou uma forma de desenvolver políticas para abordar a discriminação. A maioria dos países tem diversas políticas para enfrentar a discriminação: de gênero, muitas vezes racial, sobre a deficiência. É possível notar isso muitos países. A posição das mulheres no mercado de trabalho continua sendo desigual, mas é muito melhor do que há 30 ou 40 anos. É importante desenvolver e defender a legislação em nível nacional.

 

 

No entanto, o que também aconteceu é que estamos vendo um mundo no qual existe uma crescente desigualdade entre os Estados-nação. Muitos dos países mais desiguais do mundo, como os Estados Unidos, são também os que tentam fazer valer seu músculo no cenário mundial. Donald Trump não atuou no sentido da colaboração com outras nações.

 

É possível pensar do mesmo modo sobre o que acontece na China, Turquia, Grã-Bretanha. Até que ponto mudaram para condições mais xenófobas e nacionalistas. Convocam o espírito de engrandecimento do Império e minam a solidariedade entre os países. Fomentam formas de populismo e xenofobia, sentimentos anti-imigrantes. Minam a viabilidade das nações como comunidades compartilhadas. Estou preocupado com os efeitos dessas ações cada vez mais egoístas sobre a desigualdade.

 

O risco é de governos como o de Jair Bolsonaro ou Viktor Orbán ou imagina um retorno a governos militares e interrupções do sistema democrático, ao estilo de Daniel Ortega, na Nicarágua, ou Nicolás Madura, independente das nuances ideológicas em um caso ou outro?

 

Em muitos países democráticos na Europa e América do Norte, supunha-se que o crescimento econômico levaria a uma sociedade mais racional. Que o assessoramento científico e as melhores políticas estabeleceriam estratégias corretas. Mas desde o crash financeiro de 2008 foi algo que não aconteceu. É cada vez mais difícil para os governos democráticos administrar dessa forma progressista. Vimos mais provas de divisão.

 

Donald Trump e outros líderes populistas não parecem cumprir as normas democráticas. Acontece na Rússia, com Vladimir Putin. Turquia e China vão na mesma direção. Estamos em uma situação muito grave e não devemos nos limitar a buscar um governo que faça as coisas um pouco melhor e nada mais. Tenta-se militarizar a sociedade. Apela-se às massas para colocá-las contra os imigrantes e do lado das elites.

 

Não faço previsões, destaco uma conjuntura. Nos últimos dois anos, há indícios de que a maré pode estar mudando em uma direção mais positiva. Sou um pouco mais otimista do que quando escrevi meu último livro. Vemos sinais animadores em alguns países, embora não em todos.

 

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